Prometeu e a serpente
Julia Myara

Sozinho, no vermelho deserto, no fim da tarde de algum inferno
Fixa os olhos no horizonte de espelho, para o Infinito mar de sereia
Olha e agrada-lhe ver,
Alta, escura e poeirenta, águia na tempestade de areia.
Percorreu muitas terras o vento tenebroso
Fez chover sangue na verde e molhada Inglaterra
Fez os nômades do Marrocos se vestirem de bronze
A proclamarem contra o vil, violenta e autêntica guerra.
Mas alegra-lhe a visão, nos olhos ciganos cansados pela exaustão
O levantar da fumaça com cheiro seco de calor
Que deixa no vento hostil aroma de mirra e conhecido sabor
Chega rápido a sombra oculta e traz com ele a escuridão
A cegueira acorda o estranho nômade do estorvo da visão
Erguem-se tendas e sobem os tapetes mouros
Ressoam, sob a mente, os sons longínquos das correntes
Chegam as caravanas dos povos que vivem na imensidão de ouro
Mas há uma brisa molhada que se insinua no ar
E a voz do profeta a ecoar
O sertão há de virar mar
Porque ele fala com a voz daqueles que tem os olhos pregados no amanhã
Com os sentidos confundidos nesse tempo feito de feixes
Divididos, organizados, amargos e lineares
Que se revela, contudo, sobrepostos, autêntico, cíclicos e lunares
De saudade terrosa do que ainda não se deu
Abate-se como foice e martelo na rosa
a vida roubada de Prometeu
Nos olhos cítricos do acorrentado andarilho
Que nome oculto esconde sob as pálpebras de âmbar
O titã encara de fronte erguida a tempestade de areia solar
Trazida com o voo da ave maldita com o fígado a lhe despedaçar
Tenciona a corrente que faz o Senhor de tudo curvar
Rompendo guilhos e muros, chega ele livre onde os de carne frágil vivem
E sente-os como parte do seu sangue, fraco, delirante e inseguro
Com a cabeça branca cheia de areia e maresia, visão oracular ele tem
De fogo sagrado, aceso em ventania, entregue vibrante, ainda que domesticado
Para as mãos e o corpo de bicho encarcerado, fora do divino jardim encantado
Amaldiçoados, exilados, conscientes e mortificados
Expulsos foram do paraíso, já não há mais metafísica
Dizem eles: De que adianta viver, sem a sedução do saber?
Dizem eles: Para que ignorar morrer, se devemos envelhecer?
Que pouco resta desses animais, sem virtude própria e física?
E agora tudo é trabalho e fazer com disciplina
Tirar a força do pó que se demora e rumina
Com suor do rosto marcado pelo tempo e pelo prado
Amaldiçoada também é ela, que com luz sangra pela aridez da víscera terra
Mas não é sábio mostrar-se ingrata, ainda que o seja ser irada
Pois de roubada técnica do antigo andarilho ousado
e intervenção ferina de rastejante animal sagrado
Que se mostrou belo e por amor, rebelado
Abriu os olhos e viu, ela, que antes era, assim como Hera
E falava setenta línguas, mas hoje carrega chifres de fera
Ou sátiro malogrado
Do saber latente, por antiga serpente conciliado
Hoje, em eterna expulsão, exilados e na diferença ensinados
Entre os homens se faz guerra
E nós, condenadas pelo criador malfadado
E esmagar-lhe a cabeça com a Pedra
Entre nós, se faz poesia.
Julia Myara é professora de Filosofia e cofundadora do IPIA comunidade de pensamento.